Uma carta ao póstero
Aquele era seu último momento, não havia dor, remorso, ou o que fosse, só uma sensação íntima de dizer adeus, de falar todas as palavras necessárias atrás daquele púlpito, diante de todos naquela igreja.
Sentia-me como o único que poderia dizer todo o necessário, clarear a visão alheia da forma mais bonita e dolorosa possível, logo ela, que partiu dizendo que ao ser fechado o caixão, todos instantaneamente tornam-se bons. Que as flores levadas aos mortos denotam mais remorso que empatia, que as mesmas não foram entregues em vida, enquanto tudo ainda era possível, principalmente, cheio de energia, no exato momento em que as expressões poderiam ser respondidas à altura, e não apenas com uma entonação morta, fria, sem sentido.
Esse costume alheio de tornar bom quem se foi sempre tinha me deixado com um pé atrás, não entendia o porquê de não poder ser um jogo de pesos e contrapesos, pontos positivos e negativos. E sim, ela entendia muito bem isso, por isso eu fiz questão de entoar em alto e bom som, por mais julgado que eu fosse ser, por mais baixo que a minha conduta fosse parecer, naquele momento só me fazia sentido ser verdadeiro, entregar tudo, para que assim, talvez ela pudesse partir em paz, sem estar encoberta por mentiras mal contadas, melodramas desnecessários, que dessa forma, pudesse finalmente ir despida, sem a medalha de honra dada pelos que ficam aos que nos deixam, mas, possivelmente, com a tranquilidade daqueles que se ausentam livres de falsos méritos, e ainda assim, honrados.
Não, ela não foi apenas orgulho, por mais que tivesse me ensinado o bastante sobre ética e moral, mesmo sem saber diretamente nada sobre isso, assim como me ensinou perfeitamente quem não ser, apenas sendo ela mesma, e eu sentia uma necessidade extrema de não seguir alguns dos seus passos, pois sabia que ali não residia a mínima virtude.
Logo ela, que a mão que apedreja, é a mesma que bate, em pouquíssimos momentos expressou afago, uma realidade dura, inaceitável para a maioria, talvez por isso a pouca confiança, ou mesmo as poucas decepções, quando quem mais deveria mostrar zelo, foi incapaz disso.
Parecia duro ser tão fria, tão indiferente, ou falar só com tom de crítica, e ao mesmo passo, recusar qualquer uma que fosse direcionada a ela, talvez fosse sua história, possivelmente os pesos que precisou carregar, assim como queria insistentemente que carregássemos os mesmos, sendo os tempos outros, as provações, totalmente distintas.
A história foi contada passo a passo, as expressões eram as mais perturbadas possíveis, aparentemente apenas eu tinha tempo de fala, enquanto outros seguiam com o ânimo de falar e em seguida desfazer todos os meus dizeres, mas os mesmos não tinham tanto conhecimento quanto eu, ao que tudo indica era o único capaz de extrair subjetividade de toda uma vida, de velejar ponto por ponto, como em uma penosa odisseia, que eu mesmo não tenho orgulho algum de ter cruzado, porém, foi peça chave para a história terminar como terminou.
De verdade, afinal, não haveria outra forma de ser encerrada, replicando os ensinamentos deixados por ela, que por mais que duros, foram genuínos, de uma sensatez tamanha, que seria impossível retratar tudo de uma maneira diferente, não haveria outra forma de homenageá-la senão externalizando a realidade de forma nua e crua, para que enfim ela pudesse partir modestamente, como ela sempre pregou.